27.12.04

Feliz Natal
Marco Lacerda, de Madri

Houve um tempo em que Natal era a celebração do aniversário de um menino nascido há dois mil anos, que cristãos ao redor do planeta acreditavam ser o filho de Deus. Era um tempo em que o mundo parecia nos pertencer por completo e nossa maneira de comemorar era armando um presépio no lugar mais nobre da casa. O resultado era um prodígio de licenças poéticas: o menino Jesus era maior que o boi, as casinhas encarapitadas nas colinas de papel machê eram maiores que a Virgem, tinha um trenzinho de plástico na paisagem bucólica de Belém, um ursinho de pelúcia grudado no galho de uma árvore e um guarda de trânsito orientando um rebanho de ovelhas nas ruas de Jerusalém. Em cima de tudo havia uma estrela de papel dourado a indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. Era mambembe, desengonçado, mas parecia conosco.
Os brinquedos que ganhávamos eram piorra, pião, bola de meia e boneco de pano, e acreditávamos que eram trazidos, não pelos reis Magos, como rezava a tradição, mas pelo Menino Jesus. Íamos dormir mais cedo no dia 24 para que os presentes chegassem depressa. Éramos felizes com as mentiras que nos contavam.
Não demorou muito até que alguém se apressou em dizer a verdade. A decepção foi imensa, não só porque acreditávamos que era o Menino Jesus quem trazia os brinquedos, mas porque queríamos continuar acreditando assim. Acho que nossa infância acabou no dia em que soubemos essa verdade inútil. Logo deixaríamos de acreditar também que as cegonhas traziam os bebês e que estrelas do mar eram estrelas cadentes que saltavam do firmamento e vinham animar a solidão dos oceanos, onde as ostras viviam fechadas e os peixes morriam de tédio.
O Menino Jesus foi destronado e em seu lugar nos mandaram um velho vestido de vermelho com longas barbas brancas e nariz inchado de porres homéricos. O nome do velho é Santa Claus, mas ele ficou conhecido entre nós como Papai Noel. Montado num trenó cheio de brinquedos importados, puxado por alces voadores, o usurpador rasgou nossa noite tropical sob uma fantástica tempestade de neve. O nascimento de Jesus começava a se transformar num negócio multinacional. O Natal tornou-se um mês de consumismo frenético em que somos obrigados a incorporar às nossas vidas uma cultura de contrabando que inclui neve artificial, peru recheado, frutas secas e ridículas canções natalinas traduzidas do inglês.
A Noite Feliz virou um pesadelo. As crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados perseguindo as mulheres de outros bêbados apagados no sofá da sala. A noite de paz tornou-se ocasião de encontro de gente que apenas a aproveita para por em dia gestos esquecidos durante o ano: dar esmola ao mendigo que ninguém nota, convidar para a ceia a vizinha que ficou viúva prematuramente ou o tio esclerosado que ninguém quer por perto. Virou uma noite da felicidade compulsória em que presenteamos para sermos presenteados em troca. Uma noite a ser suportada, não mais celebrada.
Por causa do engôdo, até os cristãos passaram a celebrá-lo desse jeito esquisito, como se desconhecessem o seu significado original. Muita gente aderiu à festa, não por acreditar nela, mas por causa do agito, e outros porque insistem em torcer o rumo das coisas até que ninguém acredite em nada, apenas sigamos comprando e presenteando sem motivo. Às vezes a festa acaba em tapas e tiros, mas ninguém se assusta. Como não se assusta quando as crianças, perdidas na confusão, dizem que o Menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos Estados Unidos, onde nascem as pessoas importantes.
Fomos vivendo, ou melhor, empurrando a vida, mergulhados numa estranha letargia que nos impediu de lembrar quem somos. Até sermos acordados por aqueles aviões, que pareciam estar vivos, chocando-se contra as torres, embuídos de fúria assassina, e as torres desabando ao som de um coro de vozes distantes a nos dizer o quanto o mundo em que vivemos é odiado. Agora, quando chega dezembro, sentimos saudade daqueles natais que nunca mais foram nossos e talvez nunca mais sejam. Ainda vamos dormir mais cedo no dia 24, mas já não temos certeza se vamos acordar vivos no dia 25, para celebrar…o que mesmo, meu Deus?


Este é um texto de um grande amigo, Marco Antonio, sobre o Natal. Valeu Marco.